
Lisboa
geométrica menina
nas roupagens antigas
comque te vestiram,
de estopa em Alfama
de rendas em Belém.
Vejo-te,
no Tejo de águas sujas
onde molhas os pés
mas já não lavas o rosto.
Ouço-te,
nos teus bairros,
no pregão dos teus ambulantes,
na disputa das tuas gentes
que te fizeram criança.
Cheiro-te,
não o cheiro dos mangericos
no Santo António,
ou do rosmaninho,
na Semana Santa,
que esses
são cheiros de pouca dura,
mas esse cheiro,
intenso, constante, diferente,
o cheiro do teu dia a dia,
dos teus mercados,
do teu metro
esse túnel que te esventra,
dos teus transportes públicos,
dos escapes desses monstros
que te cruzam
incessantes.
Sinto-te,
na azáfama dos teus transtejos,
dos teus comboios,
de tudo o que despeja em ti
essa linfa que te corre nas veias.
Não te percorro,
corro-te
na loucura das tuas luzes
verdes, vermelhas,
quase sempre amarelas,
que cortam o fluir constante
das tuas artérias.
Acotovelo-te,
empurro-te,
vivo-te
na onde borbulhante que te percorre
as nove, às doze e às seis da tarde,
amálgama de gente que te recorda,
velha,
na criança que és,
Lisboa.
Passeio-te
indiferente,
rindo às vezes de outras gentes
que descobre em ti o que eu não vejo,
porque te olho sempre.
Assisto,
sem sentir,
ao teu crescer desgrenhado,
desordenadamente alinhado,
num espreguiçar de vestido mal talhado,
que te deixa,
remendona,
em tudo igual às trapeiras
que, em tempos,
te cruzavam ao amanhecer.
Mas quando à noite
o sangue nas tuas veias se acalma
e eu posso olhar-te serenamente,
descubro em ti,
latentes,
pequenas maravilhas que ofereces
a quem diariamente por ti passa.
Então,
olhando o teu castelo milenário,
mudo,
inerte,
recortado contra o azul negro do teu céu
polvilhado de prata,
eu sinto,
como na lenda de Ataualpa
o Inca,
que não morrerás nunca
e quando o primeiro raio de sol da manhã
te beijar,
docemente,
tu reviverás
Lisboa
(1992-1993)